Toronto — O controle eficaz do peso vai exigir uma mudança de paradigma na forma como os profissionais de saúde encaram a obesidade, sugere um dos maiores especialistas no assunto.
Caso contrário, os pacientes estão fadados ao fracasso e à culpa, apesar do fato de que a comunidade médica precisa assumir parte da responsabilidade por não ter criado intervenções mais eficazes, disse o Dr. Lee Kaplan, diretor do Obesity, Metabolism and Nutrition Institute no Massachusetts General Hospital, em Boston (EUA).
“Meus colaboradores e eu acreditamos – e a Obesity Society e outras organizações profissionais concordam – que a obesidade é uma doença”, disse o Dr. Kaplan aos delegados da reunião de 2018 das Pediatric Academic Societies.
Como tal, a obesidade tem de ser deflagrada por meio de processos fisiopatológicos, como ocorre com o diabetes tipo 2 e outras doenças crônicas, reforçou o Dr. Kaplan.
Assim como o diabetes, a obesidade também nunca é “curada”, embora o índice de massa corporal (IMC) de um paciente possa estar sob excelente controle. Os pacientes “ainda sofrem de doença da obesidade, mesmo que já não correspondam à definição da obesidade pelos nossos parâmetros”, explicou o Dr. Kaplan.
Se a obesidade for de fato uma doença crônica, os médicos precisam tratá-la como uma doença crônica. E há muitas boas razões para fazer isso, ressaltou o médico. Primeiro, a obesidade traz importantes riscos adversos à saúde. O diabetes tipo 2, por exemplo, é comum nos casos de obesidade, como o são a hipertensão, a dislipidemia, a apneia do sono e a esteatose hepática.
Pessoas que fizeram a dieta mediterrânea se saíam melhor em termos de redução do risco cardiovascular se eram obesas, mas isso ocorreu apesar de uma média de perda de peso menor que meio quilo.
As comorbidades comuns tratáveis normalmente ditam a conduta terapêutica para os pacientes obesos, mas o tratamento da própria obesidade costuma ser negligenciado. Além disso, acredita-se, muitas vezes incorretamente, que os tratamentos que reconhecidamente melhoram as comorbidades da obesidade ajudam a tratar a própria obesidade. Um exemplo marcante é a recomendação frequente da dieta mediterrânea para promover a perda ponderal de pacientes obesos.
Resultados de vários grandes estudos mostraram que a dieta mediterrânea tem pouco efeito sobre o peso corporal, apesar das frequentes afirmações em contrário. Em um estudo divisor de águas (N Engl J Med 2013;368:1279-1290), as pessoas que fizeram dieta mediterrânea reduziram significativamente o risco de doença cardiovascular, mas a modificação alimentar não teve nenhum efeito apreciável no peso corporal.
“Pessoas que fizeram a dieta mediterrânea se saíam melhor em termos de redução do risco cardiovascular se eram obesas, mas isso ocorreu apesar de uma média de perda de peso menor que meio quilo”, indicou o Dr. Kaplan.
“Precisamos ter cuidado com o que dizemos aos nossos pacientes, pois se lhes dissermos que eles vão perder peso ou evitar o ganho de peso fazendo uma determinada dieta, e isso não ocorrer, então os pacientes e os pais deles dirão: ‘eles não sabem o que estão falando’, e desistirão”, disse o médico.
Mudança de paradigma
Talvez o argumento mais poderoso para deixar de pensar que a obesidade decorre de uma opção de estilo de vida venha de um estudo global no qual os pesquisadores acompanharam as tendências do IMC de 1980 a 2013 (Lancet 2014;384:766-781). Nesse estudo, o percentual de adultos com índice de massa corporal igual ou maior que 25 kg/m2 aumentou incessantemente ao longo do tempo tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento.
“Na verdade, na prática, nenhum país apresentou diminuição da incidência de obesidade ao longo dos últimos 40 anos, o que é uma estatística muito preocupante”, observou o Dr. Kaplan.
“Podemos discordar sobre qual é a principal causa da obesidade, mas a via final, pela própria natureza dela, tem de ser fisiopatológica, não o mero controle voluntário do equilíbrio energético”, disse o médico.
O porquê dessa mudança de pensamento ser tão crucial se resume a compreender o que leva as pessoas a comerem demais e a ganharem peso, continuou o Dr. Kaplan.
Naturalmente, os médicos que tratam a obesidade fazem uma anamnese para identificar o que desencadeia o ato de comer, os padrões de exercício, os níveis de estresse, os padrões de sono e os desequilíbrios do ritmo circadiano relacionados com a obesidade, bem como qualquer medicamento que possa causar obesidade.
Comer demais não causa obesidade, a obesidade faz comer demais.
“Fazemos uma anamnese detalhada e depois dizemos ao paciente, ‘coma menos e se exercite mais'”, gracejou o Dr. Kaplan. Mas esta frase revela a pouca compreensão das bases biológicas da obesidade ou da heterogeneidade dela.
O corpo defende uma massa de gordura do mesmo modo como defende uma massa de eritrócitos, explicou.
“Se você desordenar as hemácias doando sangue, seu corpo vai trazê-las de volta ao que eram antes de você doar o sangue”, assinalou. Da mesma forma, se um paciente fizer lipoaspiração para remover a gordura, a gordura vai voltar a se depositar onde estava antes da remoção, e vai voltar a se depositar “mais e de modo mais irregular” do que era antes.
“Se existe um mecanismo fisiopatológico que mantenha a gordura corporal excessiva além do que é normal ou saudável, então esse mecanismo irá nos levar a comer demais no caso da obesidade”, disse o Dr. Kaplan.
“Comer demais não causa obesidade, a obesidade faz comer demais. Analogamente, tratar aquém do necessário não cura nem resolve o problema da obesidade, o tratamento eficaz da obesidade faz comer menos”, frisou.
Isso traz uma importante questão para os médicos: o que funciona e o que (previsivelmente) não funciona no tratamento da obesidade.
O que pode funcionar
Se a obesidade é um estado patológico, então os tratamentos utilizados para modificar este estado precisam ter natureza fisiológica, para poder diminuir o ponto de ajuste do aumento da massa corporal de gordura que leva as pessoas a comerem demais, explicou o Dr. Kaplan.
O arsenal terapêutico da obesidade é composto de dieta saudável, exercício físico, redução do estresse, melhora da saúde do sono, restabelecimento dos ritmos circadianos normais, medicamentos contra a obesidade (como a metformina e a liraglutida), que promovem a perda ponderal, e cirurgia bariátrica.
Intervenções que normalmente não costumam funcionar, pelo menos em longo prazo, são as restrição calóricas de uma dieta quimicamente inalterada em relação ao que os pacientes comiam antes (ao que o Dr. Kaplan, brincando, se referiu como a dieta do meio bolinho); medicamentos que comprometam a absorção, como o orlistate (Xenical®, Roche), o único medicamento contra a obesidade atualmente aprovado pela Food and Drug Administration norte-americana especificamente para o tratamento da obesidade infantil; e a colocação de dispositivos como o balão intragástrico, que restringem a ingestão de alimentos ou causam má absorção.
É improvável que o aumento dos exercícios, se os pacientes já estiverem se exercitando regularmente, promova uma perda ponderal significativa em longo prazo, acrescentou o Dr. Kaplan.
Cada intervenção contra a obesidade “funciona bem apenas para um pequeno subgrupo de pacientes. Há enorme variabilidade na resposta a estas intervenções”, advertiu.
Isto sugere que existem vários subtipos de obesidade que, se mais bem definidos, poderiam ser usados para prever o quão bem o paciente pode responder a uma determinada intervenção. Mas ainda não foram criados modelos preditivos precisos.
Enquanto isso, o Dr. Kaplan e equipe estão explorando o potencial de uma pontuação de risco genético para ajudar a determinar a probabilidade de resposta de um paciente a um determinado tratamento.
“O poder da genética para auxiliar a orientar o tratamento da obesidade é amplamente inexplorado”, disse o Dr. Kaplan.
“Mas, à medida que aprendermos mais sobre a heterogeneidade da obesidade, prevejo que poderemos oferecer tratamentos mais individualizados e eficazes, que por fim irão conduzir a estratégias mais eficazes de prevenção da obesidade”.
Tratamento individualizado
O conceito da obesidade como doença crônica de base fisiológica que requer tratamento com intervenções fisiológicas faz sentido, disse a Dra. Amy Fleischman, diretora do Optimal Weight for Life Program at Boston’s Children’s Hospital, em Boston (EUA). Dra. Amy concorda com o Dr. Kaplan que o tratamento deve ser individualizado para otimizar as chances de sucesso.
“Temos uma grande variedade de ofertas no nosso programa clínico”, disse a Dra. Amy. “Oferecemos consultas individuais, consultas em grupo, programação de exercícios e grupos nutricionais porque acreditamos que coisas diferentes funcionam para diferentes crianças e famílias”.
“Também nos concentramos no tratamento da família inteira”, acrescentou.
Outro elemento fundamental para o sucesso é identificar os pequenos passos que os pacientes e suas famílias consideram factíveis, em vez de impor objetivos maiores que eles podem não ser capazes de manter.
“Para as crianças em crescimento, às vezes o objetivo simplesmente não é a perda de peso”, explicou Dra. Amy. “Mesmo no nosso centro de atendimento terciário, onde atendemos a obesidade mórbida, inicialmente nos concentramos em diminuir a velocidade do ganho ponderal”.
A primeira meta para uma criança em crescimento é a estabilização do percentil do IMC. Quando as crianças ainda estão crescendo, o IMC delas irá melhorar ao longo do tempo com a redução da aceleração do ganho ponderal”, acrescentou a Dra. Amy.
O Dr. Lee Kaplan é consultor científico das empresas AMAG, Gelesis, GI Dynamics, Johnson & Johnson, Novartis, Novo Nordisk, ritmo, Sanofi e Zafgen. A Dra. Amy Fleischman declarou não possuir conflitos de interesses relevantes.
Nota ao leitor:
As notas acima são dirigidas principalmente aos leigos em medicina e têm por objetivo destacar os aspectos mais relevantes desse assunto e não visam substituir as orientações do médico, que devem ser tidas como superiores a elas. Sendo assim, elas não devem ser utilizadas para autodiagnóstico ou automedicação nem para subsidiar trabalhos que requeiram rigor científico.
Referências: Reunião da Pediatric Academic Societies (PAS) 2018. Apresentado em 5 de maio de 2018.
https://portugues.medscape.com/verartigo/6502374#vp_3