Dra. Carolina Gonçalves - Saúde Digestiva e Cirurgia

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Conduta expectante é segura no câncer retal?

Em pacientes com câncer retal e resposta clínica completa após terapia com neoadjuvante, a estratégia W&W (Watch and Wait, em inglês, “esperar e observar”), que permite evitar uma cirurgia maior, é relativamente nova. Um artigo publicado no periódico The Lancet oferece agora os resultados da avaliação de mais de 1000 pacientes do registro International Watch & Wait Database (IWWD). Os autores trazem resultados positivos, mas destacam a importância da vigilância endoscópica para a opção da cirurgia curativa.

O trabalho é assinado, entre outros, pela pioneira no uso da estratégia W&W, a brasileira Dra. Angelita Habr-Gama, e o Dr. Nuno L. Figueiredo, português, diretor do Centro Cirúrgico da Fundação Champalimaud, onde nasceu a ideia de criar uma base de dados prospectiva internacional que incluísse todos os doentes de todos os centros a que adotam a estratégia W&W.

Foram incluídos pacientes nos quais, após a terapia neoadjuvante (quimio-radioterapia), não foi feita cirurgia de excisão mesorretal, e que não tinham sinais de tumor residual. Participaram pacientes de 47 centros de 15 países, sendo 23% dos casos oriundos do Brasil. Também contribuíram com casos Holanda, (29%) Reino Unido, Argentina, Bélgica, Alemanha, Dinamarca, Franca, Irlanda, Polônia, Portugal, Rússia, Suécia e Turquia.

Resultados

A sobrevida total aos cinco anos foi de 85%, e a sobrevida específica da doença de 94% . Em 8% dos pacientes (71) foi diagnosticada metástase à distância. Destes, 11% no primeiro ano após o diagnóstico, e 75% dentro de três anos. A frequência maior foi nos pulmões (62%), seguida do fígado (41%), ou em ambos locais (18%).

 

“Neste trabalho pudemos demonstrar os riscos/benefícios do W&W aplicado à população em geral e, apesar da heterogeneidade inerente a um grande estudo prospectivo, observacional e multicêntrico, demonstramos dados da ‘vida real'”, disse o Dr. Figueiredo.

 

“As recidivas após respostas clínicas completas (cCR) foram identificadas majoritariamente até os dois anos pós tratamento e localizaram-se sobretudo na parede do reto. A recidiva ganglionar isolada foi muito rara, o que reforça a importância de uma vigilância endoscópica rigorosa nos protocolos de W&W. Deste modo, a detecção precoce das recidivas permitiu o tratamento curativo com cirurgia. A sobrevida foi excelente e o risco de recidiva local não passível de cirurgia de resgate foi muito baixo.”
O Dr. Figueiredo destaca que nos pacientes com câncer de reto baixo, “cerca de 30%-40% podem ter uma resposta completa após neoadjuvância e evitar a cirurgia, portanto o impacto desta estratégia é enorme”. No entanto, diz ele, os doentes também têm de ser informados de que 25%-30% irão recidivar e, por isso, necessitar de cirurgia em uma fase mais tardia.

“É assim crucial que os doentes compreendam a necessidade de cumprir estritamente o programa de vigilância, de modo a detectar imediatamente uma recidiva.”
A Dra. Angelita Habr-Gama acrescenta que o trabalho publicado no Lancet “mostra pela primeira vez os dados de quase 50 instituições em 15 países que trataram pacientes com câncer de reto utilizando a estratégia W&W”.

“Como era esperado, estes mais de mil pacientes tiveram resultados oncológicos semelhantes aos publicados pelo nosso grupo nos últimos 25 anos. A importância deste trabalho foi demonstrar que esta estratégia pode ser reproduzida mundialmente, com ótimos resultados oncológicos”, afirmou a Dra. Angelita, que é professora-titular emérita de cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, e Honorary Fellow das sociedades científicas: ASA, ACS, ESA, RCS England, ASCRS, ASTRO, SBCP, CBC.
“Por muitos anos, ouvimos a crítica de que o W&W não poderia ser reproduzido em outros centros. Nos últimos nove anos, diversos centros publicaram resultados semelhantes aos nossos com casuísticas pequenas. Finalmente este trabalho publicado no Lancet confirma que esta estratégia pode ser reproduzida em outros centros pelo mundo.”

Limitações

Pela própria metodologia, a pesquisa, baseada no registro que representa um período de 25 anos de evolução, tem limitações, como a variabilidade nos centros participantes e as mudanças através do tempo. A revista The Lancet inclui na mesma edição o comentário de uma equipe britânica que está realizando em pacientes com câncer retal local avançado o estudo TRIGGER, um ensaio controlado prospectivo, comparando intervenção (evitar a cirurgia em pacientes identificados como cCR por regressão tumoral por ressonância magnética) versus cuidado padrão (terapia pré-cirúrgica seguida de cirurgia). Eles reconhecem o valor dos resultados do registro para que médicos e pacientes tomem uma decisão compartilhada, mas consideram “que ainda deve oferecer-se unicamente dentro de ensaios clínicos ou em grandes centros com especialistas com experiência provada.” Os comentaristas destacam que, pelas limitações metodológicas, e na ausência do grupo controle, a eficácia não pode ser definida.

 

“Obviamente, a tentação de nenhuma cirurgia é um grande embate para pacientes que poderiam exigir um estoma, mas esta opção deve ser equilibrada e claramente comunicada com as incertezas de uma estratégia W&W”, escrevem.

 

“Um ensaio clínico randomizado levanta algumas questões difíceis de responder. Como se define o timepoint para a randomização: antes ou depois da avaliação da resposta? Será possível manter o equilíbrio sabendo que o doente tem uma cCR? Será ético randomizar um doente com cCR sabendo que, em muitos casos, o paciente pode vir a nunca necessitar de cirurgia?”, diz o Dr. Figueiredo.

Estratégia é para todos?

Agora a pergunta importante é: o conhecimento da estratégia W&W está pronto para ser utilizado na prática clínica? Para a Dra. Angelita “o W&W pode sim ser oferecido em qualquer hospital. Contudo, como todo tratamento de pacientes com câncer de reto, esta também é uma abordagem muito especializada, que necessita de treinamento adequado por parte dos médicos que pretendem utilizá-la”. Ela faz um paralelo com a cirurgia robótica, que pode ser realizada em qualquer hospital que tenha um robô, desde que o cirurgião esteja habilitado a fazer a cirurgia por via robótica.

“Da mesma forma o watch and wait deve ser realizado por centros em que os cirurgiões, radiologistas, oncologistas e radioterapeutas estejam habilitados nesta estratégia. Pode parecer mais fácil não operar um paciente do que realizar uma cirurgia radical, mas não é. A seleção adequada de pacientes com resposta completa e candidatos à abordagem é muito criteriosa. O uso indiscriminado e irresponsável desta estratégia pode ser muito danoso aos pacientes.”

O Dr. Figueiredo esclarece que os centros que desejem incluir o W&W na prática clínica necessitam treinar equipes multidisciplinares. Os principais requisitos para uma unidade implementar a estratégia é o consenso entre os diversos especialistas envolvidos no tratamento do câncer do reto, a possibilidade de acompanhar rigorosamente os pacientes, e a disponibilidade de exames de boa qualidade como a ressonância magnética.

“É fundamental que os cirurgiões avaliem clinicamente os doentes no pré e no pós-tratamento, com toque e endoscopia retais”, salienta o especialista, acrescentando que os radiologistas devem estar dedicados à patologia colorretal e precisam ser treinados em ressonância magnética pélvica multi-paramétrica.

“Estudos de imagem são cruciais não só no estadiamento correto, mas também para as reavaliações subsequentes. Os oncologistas (radio-oncologistas e oncologistas clínicos) são importantíssimos na otimização da terapêutica com rádio e quimioterapia neoadjuvante, na coordenação da estratégia de terapêutica, e no tratamento da doença metastática.”

Em referência à cirurgia, o Dr. Figueiredo destaca que é necessário quebrar o paradigma clássico de que a cirurgia retal deve ser realizada entre seis e oito semanas pós-tratamento. Em uma instituição que oferece um programa de W&W, as equipas cirúrgicas têm de estar preparadas para operar estes doentes em uma fase diferente, muitas vezes anos após a neoadjuvância. Há alguns trabalhos que desmistificam esta questão, e que demonstram não existir diferenças na qualidade oncológica das ressecções nem mais complicações perioperatórias.

Na Fundação Champalimaud, o Dr. Figueiredo pratica uma política muito seletiva de radioterapia: neoadjuvância apenas para tumores que ameaçam/invadem a fáscia mesorretal, que apresentem invasão venosa extramural, ou que obriguem a uma amputação abdominoperineal. Nestes casos, e após completar a terapêutica neoadjuvante, o doente é re-estadiado por ressonância magnética e por avaliação clínica (toque retal + retoscopia) entre oito e 12 semanas pós-tratamento. Nos casos em que se verifica uma cCR, a opção do W&W é proposta e discutida com o doente, e são apresentados os riscos/benefícios desta abordagem.

 

“O doente é assim incluído na tomada de decisão da sua terapêutica, de forma consciente e informada”, conta o Dr. Figueiredo.

 

Alternativa

O tratamento-padrão para câncer de reto avançado (químio/radioterapia seguida de cirurgia de excisão mesorretal total) está associado com uma mortalidade de 1%-2%, que aumenta com idade, fragilidade e comorbidade do paciente, pode precisar de forma transitória ou permanente de colostomia, além de resultar em disfunções sexuais e urinárias em mais de 60% dos casos.

Ainda que o objetivo seja preservar o órgão em uma população estritamente selecionada, ainda há um longo caminho pela frente, pois há múltiplas questões em aberto, que ainda precisam de resposta.

“Como identificar no pré-tratamento os doentes que podem se beneficiar desta abordagem? Qual a melhor arma terapêutica para aumentar as taxas de respostas completas? Qual o melhor método de avaliação para identificar as respostas completas? Qual o esquema de follow-up mais eficiente? Como tratar de modo mais eficaz as recidivas?”, enumera o Dr. Figueiredo.

Este novo artigo científico oferece o maior registro da estratégia W&W para pacientes de câncer retal, com 50% de dados não previamente publicados. Nele, os autores convidam todos os médicos interessados na estratégia a se unirem à rede IWWD.

“A possibilidade de oferecer abordagens de cirurgia e vigilância das cCR ainda  não está em fase de poder se expandir para todos os hospitais indiscriminadamente. Um dos objetivos do consórcio IWWD foi criar uma rede de clínicos e cientistas com interesse na área, bem como fornecer orientação e treino a unidades que desejem iniciar o W&W. A formação e a educação das equipes é crítica, motivo pelo qual o W&W deve ser realizado em centros com experiência, ou em colaboração com centros com experiência”, diz o Dr. Figueiredo.

Os Drs. Angelita Habr Gana e Nuno Figueiredo declaram não possuir conflitos de interesses relevantes. A pesquisa é financiada por European Society of Surgical Oncology, Fundacão Champalimaud, Fundacão Alpe d’Huzes, Dutch Cancer Society e European Research Council Advanced Grant.

 Nota ao leitor:

As notas acima são dirigidas principalmente aos leigos em medicina e têm por objetivo destacar os aspectos mais relevantes desse assunto e não visam substituir as orientações do médico, que devem ser tidas como superiores a elas. Sendo assim, elas não devem ser utilizadas para autodiagnóstico ou automedicação nem para subsidiar trabalhos que requeiram rigor científico.

 

Referência: https://portugues.medscape.com/verartigo/6502609#vp_3