O declínio da confiança do público nos médicos, e a ascensão da disseminação de desinformação e de “fake news” espalhadas pela internet, levou ao aumento do uso de tratamentos não convencionais e não comprovados por pacientes com câncer, afirma um editorial que diz que os esforços para comunicar os avanços da verdadeira medicina precisam ser redobrados.
O editorial, publicado na edição de setembro do periódico Lancet Oncology, diz que a “colisão” entre a maior autonomia do paciente, a queda da confiança, e a ascensão da mídia social, levou ao aumento do autodiagnóstico e do uso de tratamentos alternativos por pacientes com câncer.
Isso, adverte o editorial, pode levar os pacientes a recusarem o tratamento convencional comprovado e aumentarem o próprio risco de morrer, em comparação com os pacientes que fazem o tratamento recomendado.
O editorial exorta todos os que trabalham no mundo da oncologia a combater “a desinformação e as mentiras (…)” divulgadas por meio das mídias sociais, das plataformas de notícias e dos canais de comercialização, se concentrando no compartilhamento de informações fidedignas.
O editorial indica o website dos National Institutes of Health, cujo objetivo é ajudar os usuários a avaliarem as informações sobre saúde disponíveis na internet, e também a recente contratação de um enfermeiro digital pela instituição humanitária britânica Macmillan Cancer Support com o objetivo de desmascarar as fake news por meio de um serviço de perguntas e respostas.
Não há nada de novo em ter de lidar com notícias falsas e desinformação em oncologia, afirma Martin Ledwick, enfermeiro-chefe da principal instituição humanitária do Reino Unido, a Cancer Research UK.
“Isso acontece há muito tempo e, como instituição humanitária, nossa posição é de confrontar as informações que carecem de um banco de dados decente sobre o tratamento que está sendo alardeado”, disse ele.
Martin explicou que a Cancer Research UK criou um fórum on-line há cerca de 10 anos, em parte porque “nós poderíamos, ao olhar ao redor, ver quando não existia de fato nenhum fórum moderado externo para os pacientes com câncer.
“Você podia ver que as pessoas estavam recebendo sugestões sobre tratamentos alternativos e coisas assim e ninguém estava realmente adotando isso”, comentou.
Martin observou que o blog de ciência do Cancer Research UK também “gasta muito tempo desmascarando mitos e reforçando o valor de acesso a dados adequados antes de tomar decisões”.
Sua equipe de enfermeiros da linha direta “responde muitas perguntas de pessoas que já ouviram falar sobre algo, talvez pela internet, e querem explorar isso, mas ainda não compreenderam que não é tão bom quanto parece”, disse.
O enfermeiro acredita que o crescimento da internet nos últimos anos tem criado “muito mais que uma plataforma para a divulgação de ideias” e que levou a uma mudança da natureza das perguntas formuladas.
Martin disse que os tratamentos complementares costumam ser “inofensivos”. Enquanto as pessoas que os oferecem não lhes conferem “atributos em demasia”, não há nenhum problema de as pessoas tomarem, disse ele.
“O que é complicado é quando tem alguém dizendo que isso definitivamente funciona, e começa a recrutar as pessoas por isso”, advertiu.
Outro problema, observou Ledwick, é quando os pacientes pensam que podem usar tratamentos alternativos em vez de terapias convencionais.
“Penso que esta é uma questão importante”, disse Ledwick e que, algumas vezes as pessoas pensam, “bem, talvez eu coloque o tratamento convencional de lado e tente isso antes, para ver se funciona, porque, para ser honesto, não vai funcionar”.
“Se o tratamento não tiver fundamento científico, devidamente pesquisado, você estará baseando suas escolhas em rumores e relatos informais, em vez de em provas”, advertiu.
Declínio da confiança nos profissionais de saúde
O editorial observa que o “grande desafio” da oncologia hoje é o declínio da confiança do público leigo na opinião profissional, em cujo epicentro há “uma colisão entre a autonomia pessoal, a imprensa marrom, as mídias sociais, a desinformação generalizada e a marginalização política”.
O editorial afirma que, juntos, esses fatores solapam os alicerces da ciência e da vocação acadêmica, o que, em oncologia, levou ao autodiagnóstico dos pacientes” e à “demanda por tratamentos específicos, independentemente da orientação dos médicos”.
Os pacientes também estão se voltando para “terapias alternativas” não comprovadas e os médicos estão praticando o que tem sido chamado de “medicina defensiva”, no intuito de evitar ações judiciais, principalmente através da utilização excessiva de exames diagnósticos.
O editorial menciona dois estudos, um publicado no início deste ano e outro em 2017, mostrando que os pacientes com câncer que utilizam a medicina complementar têm mais probabilidade de recusar a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia e têm mais do dobro de probabilidade de morrer do que os que fazem o tratamento da medicina convencional.
“Como a sociedade chegou a este ponto, onde as intervenções não comprovadas estão tendo primazia na escolha em vez das intervenções baseadas em evidências, os tratamentos eficazes?” pergunta o editorial.
“Infelizmente, a desinformação e – francamente – as mentiras, são amplamente propagadas e com a mesma magnitude das provas verificadas, devido à facilidade com que as mídias sociais, as onipresentes plataformas de notícias on-line e as campanhas de marketing de má reputação povoam os canais de informação, que muitas vezes não têm fundos suficientes para empregar jornalistas especializados no assunto para separar o joio do trigo em termos de fatos e ficção”.
O editorial afirma que para resolver este problema e para conter o declínio da confiança do público, devem ser feitas mais tentativas de transmitir o progresso da medicina com exatidão, tanto para os pacientes como para o público leigo, “a fim de assegurar que o conhecimento verdadeiro possa ser separado do material falso”.
O texto acrescenta que os oncologistas devem ser mais protegidos “de processos judiciais espúrios, da burocracia e dos estresses desnecessários”.
“Se esses desafios não forem abordados logo, os grandes avanços da ciência e da medicina, que têm melhorado significativamente a saúde humana em todo o mundo, podem ser facilmente perdidos e a sociedade vir a lamentar a inação e a confiança depositada em fontes de informações duvidosas”, encerrou o texto.
Nota ao leitor:
As notas acima são dirigidas principalmente aos leigos em medicina e têm por objetivo destacar os aspectos mais relevantes desse assunto e não visam substituir as orientações do médico, que devem ser tidas como superiores a elas. Sendo assim, elas não devem ser utilizadas para autodiagnóstico ou automedicação nem para subsidiar trabalhos que requeiram rigor científico.
Referência: Lancet Oncol. 2018;19:1135. Editorial
https://portugues.medscape.com/verartigo/6502850#vp_2