Na ausência de medidas imediatas para enfrentar as alterações climáticas, as repercussões do aumento da temperatura global na saúde humana irão levar ao “aumento significativo de mortalidade e morbidade”, de acordo com um artigo de revisão das atuais evidências publicado em 17 de janeiro no periódico New England Journal of Medicine.
“Particularmente importante para o controle dos riscos à saúde é o fato de que o aquecimento será irregular, criando riscos diferentes nas diferentes localidades”, escreveram o Dr. Andy Haines, médico da London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, e a Dra. Kristie Ebi, Ph.D., da University of Washington em Seattle, nos Estados Unidos.
Além das doenças resultantes do calor e da má qualidade do ar, evidências sugerem que a diminuição da qualidade e da segurança alimentar irá causar ainda mais desnutrição e maior prevalência de doenças de transmissão vetorial em algumas regiões, alertam os autores.
“Quase dois terços dos efeitos globais das alterações da temperatura na atmosfera e ao nível do mar para o período de 1971 a 2010 foram atribuídos a alterações climáticas antropogênicas”, escreveram os pesquisadores após reverem os dados sobre o aumento da temperatura global e das concentrações de dióxido de carbono na atmosfera.
“Em algumas projeções para certas regiões, até o final deste século, o dia mais frio no verão deverá ser mais quente do que o dia mais quente atualmente”.
Os autores também observaram uma série de eventos climáticos e meteorológicos extremos – das ondas de calor às queimadas – que resultaram no aquecimento do planeta, cada qual contribuindo com seus riscos para a saúde humana.
“As queimadas podem aumentar até 10 vezes os níveis de poluição do ar medidos por dia, com riscos adversos para a saúde, como o aumento das doenças respiratórias”, escreveram os pesquisadores.
O editorial que acompanha o estudo reforça suas preocupações. “A perturbação do nosso sistema climático, no passado uma questão teórica, está agora ocorrendo a olhos vistos – com um ônus cada vez maior para os humanos, como tempestades devastadoras, enchentes, secas, queimadas e um número crescente de doenças de transmissão vetorial”, escreveu a Dra. Caren G. Solomon, médica e editora adjunta do NEJM e a Dra. Regina C. LaRocque, médica do Massachusetts General Hospital,em Boston.
“Estresse psicológico, instabilidade política, migrações forçadas e conflitos são outras consequências preocupantes”, continuaram as editorialistas. “Estes efeitos de perturbação climática são fundamentalmente questões de saúde e representam riscos de vida para todos nós”.
Embora os riscos específicos que os pesquisadores discutem já tenham sido bem comprovados por de mais de duas décadas de pesquisas – apesar de muitas vezes fragmentados – sobre os efeitos das alterações climáticas na saúde humana, o Dr. Andy e a Dra. Kristie resumem todos estes dados em um único documento que reforça a urgência da questão e o que deve ser feito para enfrentá-la.
Riscos comprovados e emergentes para a saúde humana
Os efeitos existentes e previstos da ocorrência de mais ondas de calor, como piora da qualidade do ar, aumento do número de enchentes pelas tempestades e aumento do nível do mar, mudanças na epidemiologia das doenças de transmissão vetorial e aumento da pobreza, foram extensivamente estudados. Mas enquanto a calamidade climática progride, pesquisadores começaram a identificar mais ameaças à saúde humana, que não haviam sido reconhecidas ou estimadas antes, muito recentemente.
“Os efeitos da alterações climáticas na saúde mental têm sido cada vez mais reconhecidos – por exemplo, a exposição a enchentes e outros eventos extremos aumenta o risco de depressão e ansiedade, que podem comprometer de forma desproporcional as pessoas com problemas preexistentes de saúde mental”, escreveram o Dr. Andy e a Dra. Kristie.
“Do mesmo modo, um número cada vez maior de evidências indica que o aumento das concentrações de dióxido de carbono também exerce efeito adverso na qualidade nutricional das colheitas de cereais importantes, como arroz e trigo, com redução dos níveis de proteína, diversos micronutrientes e vitamina B”.
Os efeitos nutricionais de colheitas de pior qualidade e da diminuição da produção de de vegetais e legumes ameaçam a prevenção e o controle das doenças não transmissíveis, que podem contribuir para os aumentos estimados da mortalidade.
“A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que aproximadamente 250.000 mortes anuais entre 2030 e 2050 poderão ser decorrentes do aumento da exposição de idosos ao calor (relacionado com as alterações climáticas), assim como do aumento das doenças diarreicas, da malária, da dengue, de enchentes perto do litoral e de retardos na infância”, observaram os autores. E esta estimativa conservadora não considera o mais de meio milhão de mortes previstas pela diminuição da disponibilidade de alimentos até 2050.
A distribuição e a magnitude destes efeitos irá variar, dependendo do quão adequadamente as pessoas, as comunidades e os sistemas de saúde conseguirão se preparar para lidar com os riscos iminentes à saúde. Os fatores de influência são: características geográficas, alterações dos ecossistemas, qualidade preexistente do ar e da água, práticas e políticas agrícolas, culturais e pecuárias, sistemas de alerta já implantados e o nível socioeconômico, de saúde e nutricional das pessoas, além do acesso aos sistemas de saúde.
Existem soluções
Apesar da tristeza e do caráter sombrio do estudo dos Drs. Andy e Kristie, os pesquisadores abordaram o que deve ser feito para contrabalançar a inevitável incapacidade dos seres humanos de se adaptar a estas mudanças próximas – e como as ações políticas podem começar a colher benefícios desde já.
Mudar os hábitos alimentares, trocando os produtos de origem animal por alimentos de origem vegetal, por exemplo, pode melhorar simultaneamente a sustentabilidade ambiental e a saúde. A diminuição da dependência de produtos de origem animal pode liberar recursos de terra e água, diminuir a emissão dos gases causadores de efeito estufa em até 30% e reduzir o risco de doença cardiovascular, acidente vascular cerebral e vários tipos de câncer.
“Andar a pé e de bicicleta, usar transporte público e veículos de baixa emissão pode diminuir as emissões de gases e melhorar a saúde ao reduzir o risco de doenças não-transmissíveis pela menor poluição do ar e aumento na atividade física, potencialmente evitando custos para o sistema de saúde“, escreveram os autores.
Algumas estratégias de atenuação não são isentas de riscos, ponderaram Dr. Andy e Dra. Kristie. A transição para os alimentos vegetais pode causar o aumento dos preços desses produtos, prejudicando a população mais pobre, e ameaçar o acesso às fontes de proteína. A utilização do diesel como combustível para diminuir a emissão de gases pode aumentar os níveis de poluição.
“Devem ser elaboradas políticas para minimizar estes efeitos deletérios”, escreveram os pesquisadores. Uma estratégia com nuances é particularmente importante para as políticas de reforma relacionadas com os combustíveis fósseis, cujos subsídios protegem a sociedade do custo econômico total – inclusive dos efeitos para a saúde – de sua dependência, observaram os autores.
Embora possa parecer contrário às expectativas que os profissionais de saúde tenham algum papel a desempenhar nas políticas de energia, Dra. Caren e Dra. Regina defenderam o oposto no editorial.
“Como médicos, temos a singular responsabilidade de proteger a saúde e aliviar o sofrimento. Trabalhar rapidamente para restringir a emissão dos gases causadores do efeito estufa é agora uma ação primordial na nossa missão de cura”, escreveram as editorialistas.
“Combater este desafio pode parecer quase impossível, mas os médicos estão bem posicionados e, acreditamos, moralmente obrigados a assumir a liderança da luta contra as alterações climáticas com a urgência necessária”.
Mas as editorialistas não subestimam a envergadura desse imperativo frente aos incentivos financeiros da indústria de combustíveis fósseis e à negação e à inércia do governo federal.
“A modificação das nossas instituições e da sociedade irá exigir esforços combinados, organizados e contundentes”, começando pela reforma do sistema de saúde norte-americano, responsável por um décimo das emissões de gases de efeito estufa nos Estados Unidos.
“Profissionais de saúde têm então a obrigação ética de insistir na transformação da forma como os hospitais e as clínicas funcionam”.
As Dras. Caren e Regina destacaram os esforços do Kaiser Permanente, Partners HealthCare e do Boston Medical Center em caminhar na direção da neutralização do carbono e no sucesso do Gundersen Health System no uso de energia eólica, solar e derivada do metano proveniente de um aterro de lixo local no intuito de obter autonomia energética. As editorialistas também apelaram aos médicos para que orientem seus colegas sobre as “associações entre a degradação ambiental e os problemas concretos, como a poluição do ar, as doenças transmitidas por vetores e a insolação”.
Enquanto reconheceram o medo que sentem em relação à crise climática e suas implicações para a saúde humana e para as futuras gerações, Dras. Caren e Regina escreveram que irão concentrar seus esforços em áreas onde suas vozes são mais poderosas – por exemplo, ao trabalhar com estudantes de medicina em ações climáticas, juntando forças com profissionais que compartilham a mesma opinião e conversando com os parlamentares.
As editorialistas também reforçaram o apelo feito por Dr. Andy e Dra. Kristie para modificar os sistemas relacionados com os desfechos de saúde vulneráveis às mudanças climáticas, a maioria dos quais não foi criada para levar em consideração os efeitos do aquecimento global.
“Alguns exemplos são a necessidade de maior vigilância, a mudança das medidas de controle de vetores específicos, e a adaptação dos códigos de construção e locações (inclusive de algumas unidades de saúde) para abordar o aumento da temperatura e o risco de enchentes”, escreveram Dr. Andy e Dra. Kristie.
Qualquer abordagem de controle destes riscos deve ser suficientemente flexível para se adaptar às modificações dos riscos de saúde, acrescentaram os pesquisadores. Essa estratégia também engloba o confronto da realidade de que os desafios relacionados com o clima irão suplantar a capacidade de adaptação dos seres humanos em algumas situações, tais como as de calor extremo e do aumento do nível do mar.
Apesar da necessidade destas ações se estenderem além do setor de saúde, reconheceram os autores, os profissionais de saúde “podem apoiar os sistemas de saúde no desenvolvimento de formas de adaptação eficazes na redução dos riscos para a saúde das alterações climáticas, com a promoção de hábitos de vida saudáveis e de políticas de baixo impacto ambiental, suporte de ações intersetoriais para reduzir o impacto ambiental da sociedade em geral e do sistema de saúde especificamente, bem como fazer pesquisas sobre as alterações climáticas e a saúde”.
No editorial, as Dras. Caren e Regina concluíram com um apelo moral: “Quando a próxima geração nos perguntar: ‘o que vocês fizeram em relação às alterações climáticas’ queremos ter uma boa resposta para dar”.
Não foi informado patrocínio externo. Dr. Andy Haines, Dra. Kristie Ebi, Dra. Caren G. Salomon e a Dra. Regina LaRocque informaram não ter conflitos de interesses relevantes. A Dra. Caren é editora adjunta do New England Journal of Medicine.
Nota ao leitor:
As notas acima são dirigidas principalmente aos leigos em medicina e têm por objetivo destacar os aspectos mais relevantes desse assunto e não visam substituir as orientações do médico, que devem ser tidas como superiores a elas. Sendo assim, elas não devem ser utilizadas para autodiagnóstico ou automedicação nem para subsidiar trabalhos que requeiram rigor científico.
Referencia: N. Engl. J. Med. Publicado on-line em 17 de janeiro de 2019.
https://portugues.medscape.com/verartigo/6503189#vp_3