Dra. Carolina Gonçalves | Doenças tropicais negligenciadas: novos caminhos em tempos de covid-19
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Doenças tropicais negligenciadas: novos caminhos em tempos de covid-19

As doenças tropicais negligenciadas (DTN) são um grupo de 20 doenças incluindo dengue, hanseníase, doença de Chagas e leishmaniose, cujo impacto é maior nas comunidades mais pobres e marginalizadas, onde o acesso aos serviços de saúde é extremamente limitado. Faz dois anos que a Organização Mundial de Saúde (OMS) trabalha para estabelecer metas globais e marcos para prevenir, controlar e erradicar este conjunto diversificado de doenças até 2030. É o roteiro 2021-2030 de controle, eliminação ou erradicação de 20 doenças tropicais negligenciadas. Com a crise sanitária provocada pela covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019), mesmo que a luta contra estas doenças seja ainda mais relevante, será preciso realizar mudanças.

A definição do documento final pelos estados-membros da OMS, que estava prevista para acontecer em maio de 2020, precisou ser adiada para novembro. Semanas atrás, a OMS começou uma série de reuniões on-line para discutir as mudanças essenciais para alcançar as metas. Com 1.300 participantes, o primeiro webinar global em que se falou sobre o futuro das doenças tropicais não teve, porém, nenhuma apresentação da América Latina.
“Normalmente, a maior atenção das organizações internacionais está colocada na África, provavelmente supõem que os sistemas de saúde da América Latina são mais robustos e têm mais recursos”, disse Javier Sancho, coordenador da Coalizão Global contra a Doença de Chagas. Javier fez parte do grupo de apoio à redação do roteiro DTN 2021-2030.

“Na África, estão perto de eliminar a doença do sono, mas na América Latina a DTN que produz mais doença e mais mortalidade é Chagas, e estamos muito longe disso. Chagas é a mais negligenciada das negligenciadas. Até os próprios sistemas de saúde e a população afetada desatendem esta doença. Se quem a sofre não levanta a voz e não tem influência, é mais difícil de ser ouvido.”

Evitando mais danos

O ponto de partida do evento virtual global “Why We Need the NTD Road Map Now, More Than Ever” (Por que precisamos do roteiro DTN 2021-2030 mais do que nunca, em tradução livre) foi o entendimento de que o impacto da covid-19 vai durar anos e, portanto, é necessário um novo plano estratégico para adaptar os principais programas destinados às populações mais vulneráveis.

O Dr. Sabin Nsanzimana, médico em Ruanda, deu alguns exemplos sobre as dificuldades de enfrentar a covid-19 sem causar mais dano ainda. “Geralmente, para realizar o trabalho nós reunimos pessoas, e isso é justamente o que não podemos fazer agora. Precisamos nos adaptar e algumas mudanças foram fazer a distribuição das redes contra malária de porta em porta e o abastecimento de medicamentos para o HIV para um período maior. No entanto, outras mudanças não são tão simples, por exemplo, trabalhamos com escolas como plataformas educativas, que agora estão fechadas: Como manter este serviço de saúde em escolas virtuais?”

O Dr. Sabin disse ser a favor de um sistema descentralizado, mais resiliente e adaptável. “Não sabemos quando vai ser a próxima pandemia”, alertou.

O site Medscape teve acesso a um vídeo preparado para o evento – que acabou não sendo divulgado – no qual o Dr. Mauricio Vera, médico do Plano Colombiano de Leishmaniose e Chagas, relata as novas dificuldades sendo enfrentadas em função da pandemia. A lista inclui dificuldades no aceso às populações rurais e remotas, risco de diminuição do sucesso do programa de controle de transmissão por vetores, redução do orçamento por reorientação a resposta a pandemia, interrupção dos programas de rastreamento nas crianças nas escolas, impossibilidade de reunião com os líderes comunitários e redução na capacidade de prover atendimento médico – tanto para o tratamento de casos agudos como para o acompanhamento de pacientes crônicos ou que já estavam em tratamento para estas doenças. De forma geral, disse o Dr. Mauricio, a pandemia restringiu o acesso a diagnóstico e tratamento.

“O plano de intervenção de Chagas, bandeira para o suporte de outras intervenções, está sendo afetado. Corremos o risco de perder um território ganho em 10 anos”, resumiu o médico.
Novos objetivos

A diretora do Departamento de Controle de Doenças Tropicais Negligenciadas da OMS, Dra. Mwelecele Ntuli Malecela, Ph.D., centrou sua fala no rascunho [1] do novo roteiro DTN 2021-2030, que apresenta importantes mudanças em relação à versão anterior, redigida em 2012.

O novo texto se afasta dos programas de doença única, para apoiar abordagens integradas para prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças tropicais negligenciadas, como parte da cobertura universal de saúde. Até agora, os programas “por doenças” apresentavam pouca interação entre eles, o rascunho do novo documento inclui tabelas com grupos de doenças que permitem intervenções conjuntas como, por exemplo, procura de doentes suspeitos e contatos, controle de vetores e, ainda mais abrangente, o fortalecimento dos sistemas de saúde.

Muda também a orientação histórica de que a medida de sucesso é o número de ações tomadas, para passar a medir o impacto das intervenções na saúde pública. “O que se mede, se faz”, sintetizou a Dra. Mwelecele.

Outra alteração importante está relacionada com os recursos e a orientação dos programas. No novo modelo, serão os governos federais e locais que deverão liderar os trabalhos para definir as agendas e alcançar os seus objetivos com financiamento, em parte ou na totalidade, dos fundos nacionais. O documento indica que o apoio dos parceiros será destinado a preencher lacunas, reforçar a capacidade e ajudar na concretização de metas, ou seja, de uma agenda externa com apoio de parceiros e doadores, evoluirá a planos integrados a orçamentos nacionais com participação dos parceiros e doadores para superar alguns desafios.

O mais importante para América Latina, na avaliação de Javier, é reconhecer que os programas verticais não funcionam. “Hoje está comprovado que deve se integrar Chagas dentro da atenção normal e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) já avançou neste sentido. Assim, se estiverem integrados aos programas de saúde, não falaremos mais de doenças desatendidas. O aspecto negativo é que se trata de um plano que nasce sem financiamento concreto, e que pressiona a buscá-lo em uma realidade de covid-19, que concentrou recursos humanos e fundos para esta emergência sanitária.”

Com avanços, mas nem tanto

O primeiro roteiro para prevenção e controle das doenças tropicais negligenciadas foi publicado em 2012. Hoje, comparado com 2010, 40 países, territórios e áreas eliminaram pelo menos uma doença contida nessa lista e, segundo a OMS, o mundo tem 500.000.000 de pessoas a menos precisando de intervenções contra várias destas enfermidades. Um exemplo é a dracunculíase, também conhecida como dracunculose ou “doença do verme-da-guiné”, que está em vias de ser erradicada. Por outro lado, o tracoma foi eliminado em nove países, mas no Brasil e ainda é um problema de saúde pública, representando uma importante causa de morbidade, deficiência visual e cegueira evitável. A oncocercose (“cegueira dos rios” ou “mal do garimpeiro”) foi eliminada de quatro países do continente americano. No Brasil, ainda há risco de transmissão na Terra Indígena Yanomami, que fica na divisa com a Venezuela.

A maioria dos países endêmicos conseguiu eliminar a hanseníase como um problema de saúde pública, definido como menos de 1 caso a cada 10.000 habitantes. O número de casos notificados globalmente diminui em média 1% desde 2010. No caso da hanseníase o objetivo não é a erradicação, mas a eliminação (interrupção da transmissão), status que cumprem 50 países, mas que, para 2030, teriam de ser 120. O Brasil ocupa o segundo lugar mundial em número de casos de hanseníase, perdendo apenas para a Índia.

No Brasil, a bouba (yaws) praticamente desapareceu após a década de 70, mas apenas 1% dos países estão certificados como livres da doença. O objetivo para 2030 e que sejam 100%. Ainda não há nenhum país que logrou eliminar a leishmaniose visceral como um problema de saúde pública (definido como < 1% taxa de mortalidade por caso de leishmaniose visceral primária). Espera-se que sejam 32 no ano de 2023, 56 no ano de 2025 e 64 em 2030.

Em relação à dengue, o objetivo para 2030 é “controlar” a doença, reduzindo a taxa de mortalidade a zero. O objetivo precisaria ser cumprido de forma paulatina: do 0,80% que se registra hoje, passar no ano 2023 a 0,50% e continuar reduzindo até chegar a 0,0% no final do período.

Para a doença de Chagas, o objetivo é a “eliminação como problema de saúde pública”, com a interrupção da transmissão por meio das quatro vias de transmissão (vetor, transfusão, transplante e congênita) e cobertura de tratamento antiparasitário para 75% da população-alvo – algo que até hoje nenhum país alcançou. A meta é que quatro países (10%) alcancem o objetivo em 2023, 10 países (24%) em 2025 e 15 países (37%) em 2030.

Até 2030, a OMS visa interromper a transmissão de hanseníase e oncocercose; tirar o título de problema de saúde pública de doenças como Chagas, leishmaniose, raiva e esquistossomose; e controlar dengue, chicungunha, raiva e envenenamento por picada de cobra. Grandes desafios, que exigem muita criatividade em um planeta que parece só ter olhos para a covid-19.

Na última década, os caminhos seguidos foram vários. Um número crescente de governos contribuiu no financiamento interno para combater estas doenças. Além da criação de estratégias, orientações e resoluções, houve novos enfoques farmacológicos, novas técnicas de diagnóstico e novos sistemas de controle de vetores – incluindo o uso de bactérias que impedem o desenvolvimento dos ovos dos mosquitos. Ainda falta reforçar, entre outros aspectos, as mensagens de inovação, mas o aumento do compromisso dos países não vai ser fácil.

Javier sugere um caminho para a América Latina: “A mídia deveria aumentar a cobertura da saúde e não focar apenas nas emergências. E a população deveria fazer mais pressão, o tempo todo, para que o aceso à saúde seja um direito básico.”

Javier Sancho informou não ter conflitos de interesses.

Referência: https://portugues.medscape.com/verartigo/6505021#vp_3

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